Em mercados altamente regulados, como o de combustíveis, a palavra final sobre grandes negociações é do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), que tem tomada de decisões importantes, seja quando o assunto é cartel ou concentração.
O mercado de etanol terá mudanças em agosto, cuja análise e o crivo cabem ao CADE, o que não nos impede de alertar sobre os riscos do ponto de vista jurídico, em relação à concorrência e a respeito dos aspectos legais previstos nas recentes medidas provisórias editadas pelo governo federal.
O plano de fundo, tanto das MPs quanto das grandes movimentações no mercado, é o mesmo. Há enormes pressões em relação ao preço do combustível. As quais, muitas vezes, são antagonistas.
Os interesses mais claros são os do poder público e dos consumidores, que buscam a redução dos valores. Já os mais difusos e complexos são os dos acionistas e do mercado de capitais.
No fim de agosto, a Vibra Energia, antiga BR Distribuidora, e a Copersucar anunciaram ao mercado a constituição de uma Empresa Comercializadora de Etanol (ECE), com potencial real de minar a concorrência no mercado de combustíveis.
O comunicado tem importantes alertas, pois a celebração de uma joint venture dessa natureza criará a maior ECE do Brasil, alterando as estruturas do mercado de combustíveis com efeitos negativos sobre usinas, distribuidores, revendas de combustíveis (postos de gasolina) e, consequentemente, todos os brasileiros.
É nesse contexto que o governo editou a Medida Provisória 1.063, depois sucedida pela MP 1.069, que causou uma pequena revolução no mercado de combustível — goste-se ou não. E aqui iremos nos ater ao etanol.
Na prática, as usinas poderão vender diretamente ao posto, eliminando, assim, o custo de frete e a camada de lucro das distribuidoras.
No papel, é algo realmente interessante como forma de reduzir o preço. Mas uma única empresa pode colocar tudo isso em xeque, porque em um só lance, terá condições de controlar 40% de todo o mercado.
A Copersucar, uma gigante global que atua em negócios de açúcar e etanol, é a maior cooperativa do país, reunindo 20 grupos econômicos, donos de 34 usinas de cana-de-açúcar espalhadas por São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Goiás.
A cooperativa produz, sozinha, 40% do etanol comercializado no país, cuja produção será integralmente adquirida pela nova comercializadora, com o também biocombustível comprado pela Vibra Energia, maior distribuidora de combustíveis e lubrificantes do Brasil, em volume de vendas.
A ECE proporcionará notável poder econômico a esses agentes, que hoje operam nos diferentes níveis da mesma atividade. A integração vertical permitirá o controle absoluto sobre quem compra, onde compra e qual o preço que será pago no etanol produzido no país.
Por consequência das óbvias barreiras que a exclusividade pretendida irá gerar e pelas políticas comerciais discriminatórias que surgirão, há sérios riscos de supressão regional da concorrência, dificultando a entrada de outros players por meio do controle absoluto dos preços ao consumidor.
O momento não poderia ser mais inadequado para a segurança energética nacional e, por consequência, um duro golpe no mercado.
Isso porque ocorrerá após a edição da medida provisória, introdutora de um novo arranjo regulatório, que estreitou o mercado cativo dos distribuidores de combustíveis ao prever a possibilidade de venda de etanol diretamente pelos produtores (as usinas).
A escalada dos preços e a retirada da desoneração tributária do etanol anidro importado, que equaliza a incidência tributária entre o produto nacional e o importado, pesam sobre aqueles que demandam o biocombustível originado da cana-de-açúcar.
Isto acaba por mitigar a capacidade dos demais players de sobreviver em um cenário em que se veem obrigados a adquirir combustíveis somente no mercado interno.
Se implementada da forma pretendida, a joint venture inviabiliza economicamente vários pequenos negócios, já que os demais agentes de mercado não encontrarão no plano local alternativas competitivas de abastecimento de etanol.
Apesar da comunicação indicar que a ECE será livre para comprar e vender etanol, e não somente com as usinas da cooperativa, a joint venture acaba por criar uma gigante artificial que atuará nas duas pontas do mercado.
Não deveria ser permitido o controle de um agente pelo outro, sendo nítido que a atuação será prioritariamente voltada para atender as demandas da distribuidora acionista, em detrimento dos demais players.
O cenário tende a ser mais grave na região Centro-Sul, já bastante concentrada pela atuação da Raízen (outra gigante, oriunda da joint venture da Shell com a COSAN), uma das maiores produtoras de etanol do país. Ela é também integrante do seleto grupo (ou oligopólio, como definido pelo próprio CADE) constituído pelas três grandes distribuidoras de combustíveis do Brasil.
Em suma, a produção e a comercialização de etanol na região Centro-Sul passarão a ser um verdadeiro duopólio, violando dois dos princípios constitucionais da ordem econômica no Brasil: a livre concorrência e o direito do consumidor.
A ECE, isoladamente, pode até parecer um bom negócio para um determinado player, e isso é perfeitamente corriqueiro em nosso capitalismo, sempre cabendo ao CADE o crivo e a imposição de eventuais remédios à operação.
Mas, dentro do atual contexto, em nada favorece a política nacional de distribuição de combustíveis, traz malefícios aos elementos formadores de preço, com impacto direto sobre o consumidor final, além de inviabilizar as medidas provisórias.
Cria-se uma anomalia no mercado de distribuição de combustíveis, em afronta às políticas públicas que intencionam liberalizar e melhorar o ambiente de negócio no setor.
O objetivo é analisar as ideias para mudar esse cenário do alto preço do combustível. Uns vão gostar, outros nem tanto. Mas nenhuma sugestão, em nenhum lugar do mundo, incluiu concentrar o mercado.